RAJADAS DE PÓLVORA SECA CONTRA ISABEL DOS SANTOS

A empresária angolana Isabel dos Santos é acusada pelo Ministério Público do regime de onze crimes no processo que envolve a sua gestão na petrolífera estatal do MPLA, Sonangol (a, segundo o próprio Presidente de Angola, general João Lourenço, “galinha dos ovos de ouro), entre 2016 e 2017, segundo o despacho de acusação.

Isabel dos Santos é acusada de peculato, burla qualificada, abuso de poder, abuso de confiança, falsificação de documento, associação criminosa, participação económica em negócio, tráfico de influências, branqueamento de capitais, fraude fiscal e fraude fiscal qualificada. A equipa de acusação ainda procura outras acusações que possam ajudar à festa.

Além da filha do ex-presidente angolano, são acusados Paula Oliveira, amiga e sócia (seis crimes), o seu antigo gestor e amigo Mário Leite da Silva (seis crimes), o seu ex-administrador financeiro na Sonangol, Sarju Raikundalia (nove crimes) e a consultora PricewaterhouseCoopers (PwC) (dois crimes).

Segundo o despacho, datado de 11 de Janeiro, os arguidos causaram ao Estado angolano um prejuízo superior a 208 milhões de dólares (190 milhões de euros), repartidos entre 176 milhões de dólares (169 milhões de euros), 39 milhões de euros e cerca de 94 milhões de kwanzas (104 mil euros) envolvendo salários indevidamente pagos, vendas com prejuízo, fraude fiscal e pagamentos fraudulentos a empresas.

Por quantificar estão os prejuízos causados por ser filha de José Eduardo dos Santos e de, nessa qualidade, ter visto os projectos aprovados pelo governo onde, aliás, pontificava o ministro da Defesa, general João Lourenço, então reconhecido como sendo o principal “yes man” do “querido líder”.

O Ministério Público (do MPLA), que analisa neste documento a gestão da filha de José Eduardo dos Santos entre Junho de 2016 e Novembro de 2017, aponta várias irregularidades entre as quais um esquema de gestão paralela e contratos celebrados com empresas a si ligadas, através das quais foram feitos pagamentos que, afirma, serem ilegais.

Segundo a acusação, no âmbito da sua gestão e aproveitando a condição de filha do Presidente (falecido em 2022), Isabel dos Santos “devidamente concertada com os arguidos Mário Silva, Sarju Raikundalia e Paula Oliveira, de forma meticulosa, criou um plano para defraudar vigorosamente o Estado angolano, persuadindo o Conselho de Administração a tomar decisões que os beneficiaram”.

A empresária angolana foi inicialmente convidada para integrar o comité de avaliação com que se pretendia aumentar a eficiência do sector petrolífero, como consultora independente da Wise Intelligence Solution.

Esta empresa que “não tinha actividade relevante e se encontrava dormente”, tinha um contrato de prestação de consultoria com o Ministério das Finanças, no valor de 8,5 milhões de euros, e coordenava um grupo de outras consultoras entre as quais a Boston Consulting Group (BCG), PwC, VdA (sociedade de advogados Vieira de Almeida) e Accenture.

Em 3 de Junho de 2016, Isabel dos Santos foi nomeada Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, estrutura que passou a integrar também Sarju Raikundalia, inicialmente administrador não executivo, que passou a executivo com o pelouro da gestão financeira da petrolífera, numa altura em que detinha participações na PwC.

Segundo o Ministério Público, Isabel dos Santos começou por centralizar a gestão e administração dos negócios do grupo Sonangol, passando o Conselho de Administração (CA) e o Conselho Executivo a funcionar como uma única entidade, tendo levado consigo os consultores da PwC, BCG e VdA para montar um esquema de gestão paralela.

Os acusados terão ludibriado o CA da Sonangol no sentido de deliberar pela contratação da Wise – cujo contrato com o Ministério das Finanças se encontrava caducado – apesar do conflito de interesses, tendo sido autorizados supostos pagamentos vencidos via Sonangol Limited (Londres) para esta empresa pelo banco Investec.

Este, entretanto, após ter executado as ordens de pagamento encerrou as contas da Sonangol em Hong Kong por terem sido associadas a operações suspeitas de branqueamento de capitais, constrangimentos que obrigaram Isabel dos Santos a abrir, em 2017, contas bancárias tituladas pela Sonangol nos bancos Millenium BCP, BFA, BIC Angola e Eurobic, entidades onde também tinha interesses.

Face às suspeitas de fraude e para camuflar o negócio consigo mesma, facilitar a continuação do desvio dos dinheiros públicos, Isabel dos Santos e Mário Silva “engendram uma nova empresa”, Ironsea, registada no Dubai, em 1 de Fevereiro de 2017, empresa esta que assumiu em Maio de 2017 a posição contratual da Wise.

A acusação refere que a Ironsea foi criada para “legitimar e canalizar os pagamentos indevidos provenientes da Sonangol com o único objectivo de apropriação indevida dos dinheiros públicos”, mas não sem alguns obstáculos, já que a directora geral da Sonangol Limited, Maria Júlia, se recusou a assinar o contrato de prestação de serviços “por questões legais e suspeita de fraude”.

Depois de exonerar a directora, através de um despacho com efeitos retroactivos, Isabel dos Santos nomeia uma sua familiar para o cargo, decidindo-se entretanto alterar a denominação da Ironsea para Matter, empresa pela qual passaria a subcontratação de vários consultores, entre as quais a PwC, também acusada no processo.

A Ironsea/Matter era apoiada por outras duas empresas tituladas por Isabel dos Santos, a Fidequity Fine e a Santoro, que receberam também quase 2 milhões de euros por supostos serviços, lê-se na acusação.

A Ironsea/Matter facturou em 2017 mais de 130 milhões de dólares (118,7 milhões de euros), inclusivamente depois de a administração liderada por Isabel dos Santos ser exonerada, em 15 de Novembro desse ano, tendo sido emitidas facturas com datas supostamente adulteradas.

Antes da saída, Isabel dos Santos e seus parceiros ordenaram também avultadas transferências bancárias a favor da Mater, pagamentos estes executados de “forma extraordinariamente célere e sem respeitar os procedimentos”.

Paula Oliveira, ante a iminência de encerramento das contas da Ironsea/Matter, terá ainda transferido cerca de 30 milhões de dólares (27,4 milhões de euros) para contas no Eurobic tituladas por duas empresas suas.

O Ministério Público refere que apesar de não fazerem parte da administração, tanto Mário Silva como Paula Oliveira e alguns dos consultores tomavam parte regularmente nas reuniões do CA.

Noutro capítulo, Isabel dos Santos e a sua equipa custaram à Sonangol 13,1 milhões de dólares em salários, entre Outubro de 2016 e Dezembro de 2017, ainda segundo o despacho de acusação relativo à gestão da empresária na petrolífera angolana.

O documento refere que os aumentos salariais e remunerações do Conselho de Administração foram feitos sem cumprir os requisitos legais, tendo sido criada uma instância SAP (software de gestão) isolada da instância da Sonangol para processar as remunerações, tendo esta informação passado a ser inacessível.

O processamento salarial era operado por um dos seus associados, administrador financeiro da Sonangol e também acusado no processo, Sarju Raikundalia, e por consultores da empresa Odkas, sediada na Madeira que tinha entre os sócios a mulher de Mário Leite da Silva, gestor de Isabel dos Santos, igualmente acusado.

Segundo a acusação, foram processadas “remunerações exorbitantes” de 13,1 milhões de dólares (quase 12 milhões de euros) neste período, de pouco mais de um ano.

O valor incluiu salários base e outros subsídios, para 32 colaboradores dos órgãos sociais, dos quais oito receberam 8,9 milhões de dólares (8,12 milhões de euros) e 24 os restantes 4,2 milhões de dólares.

O salário base de Isabel dos Santos ascendia a 50.448 dólares mensais (cerca de 46 mil euros), sendo Paulino Jerónimo o segundo mais bem pago com 41.145 dólares mensais.

Paulino Jerónimo, que foi exonerado do cargo de presidente da comissão executiva por Isabel dos Santos, foi já na época do actual Presidente angolano, João Lourenço, nomeado secretário de Estado dos Petróleos e é o actual presidente da Agência Nacional de Petróleo e Gás.

Quanto a Sarju Raikundalia, cujas funções executivas o Ministério Público angolano defende terem sido atribuídas ilegalmente, passou a beneficiar indevidamente do salário de um administrador executivo, quando deveria beneficiar de apenar 50% deste valor, tendo ordenado ainda o pagamento de adiantamentos salariais a seu favor através da Sonangol Limited (Londres).

A regeneração anunciada em Outubro de 2018

Em Outubro de 2018, o Estado angolano disse que iria gastar 43,85 milhões de euros com a consultoria de apoio à regeneração da Sonangol, segundo despesa autorizada por despacho do Presidente da República, João Lourenço.

A informação consta de um despacho presidencial de 25 de Outubro desse ano, que justifica a despesa e o procedimento de contratação simplificado dos serviços com a “necessidade urgente de se contratar uma empresa com experiência nos sectores de actividade e do Grupo Sonangol, para suportar o seu processo de regeneração”.

Os 43,85 milhões de euros seriam utilizados para a “contratação simplificada para a aquisição de serviços de consultoria à implementação do Programa de Renovação da Sonangol” e das suas subsidiárias.

Os actos de contratação ficaram a cargo do então Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Carlos Saturnino, podendo este subdelegar, em representação do Estado angolano, conforme estabelece o mesmo documento.

A regeneração da Sonangol integrava o Plano de Desenvolvimento Nacional 2018-2022, que o documento considerou ter “uma intervenção basilar”.

Desde que João Lourenço foi empossado, em Setembro de 2017, a petrolífera estatal foi alvo de várias alterações, visivelmente já não tanto de tiros mas, cada vez mais, de rajadas no escuro para verem se acertavam em alguma coisa. Com esta pontaria que nem alveja um porta-aviões, ainda vamos ver João Lourenço a dizer, como Carlos Saturnino, que a culpa era de Isabel dos Santos.

O ministro dos Recursos Minerais e Petróleos de Angola, Diamantino de Azevedo, entregou uma lista de 53 empresas – subsidiárias ou com participação da Sonangol – ao órgão responsável pelas privatizações. Estas privatizações fazem, supostamente, parte de uma campanha para a especialização da Sonangol nas suas actividades nucleares.

O chefe de Estado disse anteriormente que o plano de reestruturação da Sonangol teinha como principal objectivo concentrar a actividade da empresa na cadeia de valor do petróleo e gás. No entanto, ao que parece, o objectivo principal é experimentar todo o tipo da rações para ver se a “galinha dos ovos de ouro” do Estado/MPLA não morre à fome.

“Para que a mesma se foque nas suas actividades essenciais, vai se iniciar em breve o processo de privatização de grande parte das suas empresas não nucleares, quer sejam subsidiárias ou participadas”, afirmou, então, João Lourenço.

“Foi com espanto que acompanhei as declarações proferidas na Conferência de Imprensa da Sonangol a 28 de Fevereiro 2018. Não posso deixar de demonstrar a minha total indignação com a forma como, sob o título de “Constatações/Factos” foram feitas acusações e insinuações graves, algumas das quais caluniosas, contra a minha honra e contra o trabalho sério, profissional e competente que a equipa do anterior Conselho de Administração desenvolveu ao longo de 18 meses”, disse na altura – com todas as letras – Isabel dos Santos.

Recordam-se? Se calhar o Povo já não se lembra. Mas certamente que Carlos Saturnino e João Lourenço se lembram todos os dias, admitindo-se até que em breve a famosa frase “espinha atravessada na garganta” passe a ter uma actualização lexical, designando-se “Isabel atravessada na garganta”.

Na sua intervenção de Março de 2019, Isabel dos Santos não tinha (e continua a não ter) dúvidas. Sobre esse disparo de Carlos Saturnino, apresentado no auge da orgia governativa como sendo um tiro de misericórdia, um xeque-mate a Isabel dos Santos, a empresária e ex-PCA da Sonangol disse: “Trata-se nada mais que um circo, uma encenação! Procurar buscar um bode expiatório, para esconder o passado negro da Sonangol, e escolher fazer acusações ao anterior Conselho de Administração! Ora, isto não passa de uma manobra de diversão, para enganar o povo sobre quem realmente afundou a Sonangol. E seguramente não foi este Conselho de Administração a que presidi, e que durou 18 meses, que levou a Sonangol à falência!”.

Esta e outras afirmações de Isabel dos Santos fizeram o suposto tiro de misericórdia ricochetear e atingir quem tinha puxado o gatilho (Carlos Saturnino), mas também quem tinha dado ordem para disparar (João Lourenço).

Isabel dos Santos disse que “em 2015, após a apresentação pelo Dr. Francisco Lemos, então PCA da Sonangol, do “Relatório Resgate da Eficiência Empresarial”, o Executivo angolano tomou conhecimento da gravidade do problema da Sonangol que, supostamente, deveria ser a segunda maior empresa de Africa, soube-se de repente que estava falida, e incapaz de pagar a sua dívida bancária.”

Em consequência deste facto, o Executivo tomou a decisão de criar a Comissão de Reestruturação do Sector dos Petróleos, e de contratar um grupo de consultores externos. Depois o Executivo avançou com consultoria de apoio à regeneração. Afinal quem estava errado?

A Comissão de Reestruturação do Sector dos Petróleos criada por Decreto Presidencial 86/15 de 26.10.2015, foi composta por: Ministro dos Petróleos, Ministro das Finanças, Governador do BNA, PCA da Sonangol, Ministro da Casa Civil da Presidência da República.

Foi assim, em representação do governo de Angola, assinado pelo Ministério das Finanças, um contrato de consultoria para Reestruturação do Sector dos Petróleos em Angola, com empresa Wise Consulting, na qualidade de coordenador de um alargado grupo de consultores identificados.

Foi solicitado pelo Executivo, que este grupo de consultores desenhasse a solução, e apoiasse também na implementação da solução, devendo para tal apoiar e trabalhar com a gestão da Sonangol.

Este contrato foi posteriormente cedido à empresa Matter, por razões de organização interna do grupo de consultores e a pedido destes. A Matter, foi o gestor transversal do projecto, foi a entidade coordenadora, e gestora dos diversos programas de consultoria prestados no âmbito da reestruturação da Sonangol, nomeadamente pelos consultores PriceWaterCoppers, Boston Consulting Group, ODKAS, UCALL, VDA, McKinsey, etc., e que teve a responsabilidade de optimizar os custos, prestações e resultados da consultoria.

A cessão da posição contratual, e contratação foi oficial, e com a autorização do Conselho de Administração da Sonangol, e do seu PCE, Presidente da Comissão Executiva.

“Pôr em causa hoje as decisões tomadas pelo Governo angolano em 2015 e 2016, pôr em causa a presença de consultores, pôr suspeitas sobre o trabalho realizado e pagamentos feitos, significa negar o facto de que a Sonangol estava falida”, disse Isabel dos Santos, acrescentando que “pôr em causa a decisão do Governo angolano em querer reestruturar a Sonangol, e tentar manipular a opinião publica, para que se pense que a administração anterior trouxe os consultores por falta de competência ou por interesses privados, significa querer reescrever a história, e atribuir a outros as responsabilidades da falência da Sonangol.”

Uma outra tese de Isabel dos Santos, que se vai confirmando aos poucos, era a de que “esta manipulação dos factos assemelha-se a um autêntico revisionismo, e só pode ter como objectivo, o regresso em força do que convém chamar como “a antiga escola” da Sonangol.”

Folha 8 com Lusa

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